Se me perguntassem o que primeiro me ligou ao futebol, diferentemente da maioria que sempre responsabiliza a bola ou o time de infância, eu diria que a culpa é da grama.
É ali que todo brasileiro sonha brilhar; num palco lúdico,
esverdeado e bem cortadinho, como um tapete macio e gostoso no qual se possa
pisar descalço e até mergulhar de peixinho.
Tanto se fala na bola - que a bola isso, que a bola aquilo;
que uns dormiam abraçados a ela (caso do Heleno de Freitas), que outros
preferiam colocá-la no chão (como era o meu caso), mas de todo modo -, sempre a
evocá-la como ponto de partida e ente fundante do nosso apego ao futebol.
Há muitas décadas, disse Neném Prancha, técnico e filósofo em
Ludopedhya: “A bola é de couro, e couro vem da vaca, que come capim, que todos
sabem, nasce no chão, que é onde a bola deve estar”.
Concordo com a filosofia de Neném e presto reverência ao solo
em que pisamos.
Lembro-me, por exemplo, da primeira vez em que vi o campo do
Maracanã. Eu tinha oito anos e viajava com minha família rumo à Floresta da
Tijuca. Lá de cima, a muitos quilômetros de distância, quando a vegetação que
ladeava o asfalto se fez rarefeita, pude enfim, vislumbrá-lo; foi o primeiro
contato visual de minha vida com o gramado sagrado do Maraca. Eu parecia o
filho do inesquecível Costinha diante do Zico: “Pai, olha o Maracanã... É o
Maracanã, pai... Pai...”. A simples visão daquele campo mítico virou meu único assunto
no Verão de 83.
Era praticamente inconcebível a qualquer garoto que um dia
sonhou em ser jogador profissional, não imaginar-se batendo bola num campo de
grama perfeita. Todos passam pelo terrão, e fazem muita casca no joelho até
(quiçá) conquistarem o “direito” de pisar num campo de gramado. Todo aquele que,
literalmente, (se) ralou a vida toda num campo irregular de terra batida, jura
por Deus que se jogasse na grama seria o melhor do mundo, tal é o grau de encantamento
que a superfície natural desperta nos peladeiros.
Conforme consta nos anais deste blog, este escritor preza
muito por uma pelada entre amigos em dia de chuva forte, num gramado ora
escorregadio, ora encharcado. De preferência com bola de capotão e camisa de
algodão para dar peso e emoção; sem camisa, então.... O Drama é inescapável. É
de rir e chorar.
Correr num campo de grama alagado, com a chuva e o vento batendo
contra o rosto, é algo exaustivo, mas extremamente libertário. É sublime.
Talvez porque seja especial sentir-se parte da dinâmica da vida, servindo como
testemunha e entreposto à água que cai das nuvens e desce pelo nosso corpo,
indo de encontro às raízes que alimentarão a seiva vegetal; é como se
permeássemos a conexão real entre o céu e a terra.
Mas.... Oh, céus! Por Deus, o que é isso!?!? Parem as
máquinas! Iceberg logo à frente!!!
Após testemunhar “o fim do futebol romântico”, do tempo em
que, tal qual o Carnaval, ele era um fenômeno de cunho predominantemente social,
vi o futebol se transformar em mega-business. E com todas as elitizações e
desrespeito às tradições que lhe foram impingidas pelos atuais tempos
neoliberais – tempos bicudos, meu caro! – li, duas semanas atrás, uma notícia que
me estarreceu ainda mais. Algo que parece ter saído das entranhas de um homem
muito frustrado ou simplesmente desnaturado: a substituição do piso natural
pelo de grama sintética em um dos principais palcos futebolísticos do mundo, o
San Ciro/Giuseppe Meazza, cogeridos por Inter e Milan.
Que um magnata mexicano adote esse expediente - como fez Jorge
Vergara, há dois anos, no estádio do Chivas Guadalajara, já é suficientemente bizarro, a
ponto de obrigar o Internacional de Porto Alegre a ter de passar pelo ridículo
de disputar uma final de Libertadores num campo de plástico e borracha (!);
tudo com o aval da FIFA -, mas pensar que duas esquadras das mais clássicas do calcio
farão o mesmo é de constranger o mais incauto dos torcedores. O que será que
esses tomadores de decisão comem no café-da-manhã?
Fico tentando calcular o incalculável: quantos dos lances
mais espetaculares de todos os tempos não teriam acontecido, caso seus
protagonistas estivessem pisando num palco dessa estirpe? Quantas quicadas de
bola patéticas e quantas raladas de boca teríamos de suportar?
Já nos tomaram a liberdade das arquibancadas, as gerais, a
festa, a farra, as bandeiras, os tambores e tudo mais; já expulsaram o povo e
encheram o estádio de boçais; e agora querem transformar a essência do jogo em
borracha moída?! Qual o próximo passo para a desnaturalização e completa
artificialização da nossa maior paixão? Bolas turbinadas que enganam goleiros,
como a Jabulani? E o que mais?
O jogo de bola é um esporte que tem sido tranformado, a cada
dia, em negócio de gente grande, com muito dinheiro envolvido e muita
concentração de poder nas mãos de pouca gente; uma gente irresponsável e
insensível a ponto de esquecer que a origem da nossa paixão vem lááá da
infância: coisa de criança.
O futebol, tido como o mais clássico, tradicional e democrático
dos esportes, parece estar passando por uma espécie de cirurgia estética para
receber essa classe nouveau riche de torcedor – aquela que, segundo o$ dono$ da
bola, “está muito exigente”. Um belo sofisma que, levado às últimas
consequências, terminará por arruinar com a expectativa e a motivação de
milhões de fãs que já se imaginam futuros craques.
São crianças que sonham em alcançar o Paraíso, correndo com
uma bola nos pés, consagrando-se em campos de futebol, mundo afora. Campos de
grama, naturalmente.
Ps: Johann Cruiff, maestro da Laranja Mecânica e atual
consultor do Chivas, orientou o clube mexicano a recolocar o gramado natural em
seu estádio, o que já está sendo feito. Ainda há esperança!!!
foto de João Sassi
Campo sintético do Varjão-DF
foto de João Sassi
Campo sintético do Varjão-DF