domingo, 20 de janeiro de 2013

Seis da Manhã - 30 anos sem alegria

Garrincha em pleno êxtase 

Lá fora estava ainda escuro, mas a luz não tardaria a aparecer. Deitado em meu colchonete, escutei a empregada trabalhando na cozinha.

Eram barulhinhos de talheres, xícaras de porcelana e de gordura chiando na frigideira. O dia estava quase nascido e um cheiro de manhã logo se instalaria pela casa. Cuscuz e inhame na manteiga, mingau de tapioca, café com leite e pão na chapa com ovos mexidos.

Eu adorava acordar cedo, principalmente porque estava de férias da escola, veraneando em Salvador com minha família. Tinha passado de ano com certa facilidade. Fazer contas de multiplicação era mais fácil que de divisão, mas o que eu adorava mesmo era fazer “composição”. Agora, porém, na 3ª Série, imaginava que as coisas ficassem mais complicadas.

Em silêncio, alcancei a porta do quarto e, já na sala, olhei para um relojão-cuco barulhento no exato momento em que o passarinho saiu para dar a notícia; seis da manhã. Pelos cantos, em leitos improvisados, espalhados por ali e pelo resto da casa, havia uma pessoa deitada. A morada estava cheia de gente, mas ninguém despertou. Foram seis cucos no vazio.

Entrei na cozinha e vi Hilda, a responsável pelo trabalho pesado da casa. Nascida no interior, ela costumava acordar antes das galinhas. Por mais dura que fosse a labuta, tinha sempre uma expressão de genuína cumplicidade para ofertar. Poucas palavras; sorriso simples. Criada ao pé do fogão, comida era o que ela sabia fazer de melhor na vida: cozinhava como já não se cozinha mais. Seu contato com a realidade era furtivo e dava-se, mormente, à hora em que se recolhia, ao pé do rádio, por onde recebia as notícias da vida. Era uma Macabéia sem par, donzela no mundo até seu último dia.

   _ “Já acordado, minino? Molhou o colchão?”, disse, mostrando os dentes separados, enquanto espremia a laranja fresca, à mão. Não tinha espremedor melhor que aquela mão. Dela, além de suco, saía carinho.

Abri a porta de casa a tempo de ver o sol surgir, dourando as dunas da Lagoa do Abaeté. E logo estava atravessando a rua que ficava a poucos passos da areia. Mingote de criança branca, me aproximei daquela água escura e me sentei. A areia estava fresquinha e era fina como açúcar de confeiteiro. Morria de vontade de pular n’água, mas meu pai dizia que dava doença. Então, eu só molhava os pés.

Procurei com os olhos pelas lavadeiras, sempre conversadeiras ao longo do dia e das margens da lagoa, mas não as encontrei. Nem elas, nem aquele bando de crianças que sempre as acompanhavam. Também não vi nenhum negão de cócoras admirando a imensidão. Meu pai dizia que eles faziam isso – ficar ali, de prontidão – porque tinham sempre um bagulhinho à mão. Eu não sabia o que era, mas devia ser bom, já que dia e noite, tinha sempre um deles vislumbrando a superfície plácida como se estivesse em profunda reflexão.

Não se escutava nada, nenhum ruído, além do cantar de alguns passarinhos escondidos pela vegetação. O sol já começava a subir, mas as águas do Abaeté permaneciam intocadas, como se o dia não houvesse ainda começado. Nem sinal de gente ou coisa alguma. Tudo estava parado, em suspenso, e o único movimento perceptível era do meu indicador, desafiando a areia molhada que fica no ínterim entre o branco das dunas e o coca-cola das águas.

Desenhei no chão um gol, e em seguida uma bola entrando no ângulo. Não tive tempo de desenhar quem a chutou. Nesse instante, alguém tocou meu ombro: -“Hilda disse que você saiu sem tomar café... Vamos lá?”- disse ele, meu pai, erguendo-me pelos sovacos e me colocando sobre seu cangote.

Seguimos em silêncio pela areia, à beira da lagoa, até alcançarmos o cume de uma ladeira que dava na rua de nossa casa. Passando por uma barraquinha de palha que vendia coco aos turistas, ouvia-se pelo radinho de pilha um locutor que alardeava, emocionado, a notícia do dia: - “Acaba de falecer, no Rio de Janeiro, Manuel Francisco dos Santos - mais conhecido como Mané Garrincha –, craque do Botafogo e da Seleção Brasileira! Chora o Brasil inteiro a morte de seu maior ponteiro!”.

Senti que meu pai tomou um baque. Com os olhos marejados, abriu a boca, mas não tinha o que me dizer. Eu sabia que alguma coisa grave havia acontecido. Ele então me olhou e disse: -“Garrincha partiu...”.

Atravessamos a rua em silêncio. De fato, Salvador ainda não acordara. Nem os coqueiros de Itapoã se mexiam. Entrei em casa e percebi que todos ainda dormiam. Na cozinha, Hilda ainda espremia laranjas. E o cuco ainda estava lá, inerte, parado no ar, sem vontade de voltar; marcava as mesmas seis horas da manhã.

Só os passarinhos puderam ser escutados naquele dia. Era 20 de janeiro de 1983 e, desde então, nunca mais se ouviu tantas gargalhadas e risadas pelos estádios. O Brasil perdeu seu ídolo mais brasileiro, e o futebol, sua maior alegria.

Em homenagem à memória de Garrincha e Hilda Carolina

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O Caso Lionel Messi: quem ama o feio, bonito lhe parece.


Fio Maravilha: - "Beleza não se põe à mesa, valeu, chefia?".

Vou abrir o jogo: eu não gosto do estilo do Messi.

Se atento for, o nobre aficionado há de perceber que é apenas uma questão de gosto, e nada mais. Não contesto sua técnica, tampouco sua genialidade, mas viro a cara para seu futebol. Para se ter uma idéia, a última partida do Barça a que assisti integralmente foi a constrangedora tarracada em cima do Peixe; antes disso, só com Ronaldinho Gaúcho em campo eu tinha saco.

Para mim, não está em pauta a (inigualável) eficiência do argentino, mas o que eu quero do jogo. Podem me tachar de reaça e dizer que não acompanhei a evolução do esporte, mas que o futebol dele se parece com o futebol de vídeo-game, isso é inegável. Há apuro no desenlace das jogadas, e até improviso, mas quase nenhuma espontaneidade. O passe é teso; o lançamento é teso; o chute a gol é teso. A perna parece ter uma amplitude mínima, movimentando-se por uma diminuta órbita, ainda que imprevisível e letal. Até a comemoração de Messi é tesa. Será que tem a ver com sua apática personalidade?

Fora de campo, Messi é comparável a Pelé; são dois sujeitos sem sal nenhum. Maradona, nesse quesito, passeia, deleitando-nos ao manifestar sua alma livre, mesmo tendo aprisionado o pensamento ao pó. O refúgio que El 10 buscou no delírio químico tem raízes na consciência do mundo hipócrita e perverso em que vive, ao contrário dos outros dois, que parecem conviver em plena harmonia com o status quo e com o stablishment. Até que ponto isso se reflete em campo, não sei (há que se inventar uma escala que meça a subjetividade), mas o fato é que a rebeldia do futebol de Maradona é visivelmente mais humana, e indiscutivelmente mais bela.

Maradona se transformou em revolucionário, Pelé em fantoche e Messi num especialista. Ele é bom no que faz e pronto. É fruto do tecnicismo da contemporaneidade. É produto da mentalidade segundo a qual a arte se torna desnecessária, quase acidental. Não vejo espetáculo nos recordes impressionantes do craque, mas apenas barreiras sendo transpostas, burocraticamente, sem tesão ou prazer. Messi faz chover em campo, mas fico algo frustrado quando o vejo jogar, pois se tem a impressão de que seu arco-íris nunca se completa. Não há encanto em sua magia.

É tudo muito preciso, tudo muito perfeito – o rápido deslocamento, o pique ligeiro, o leve toque na bola, o lençolzinho no goleiro – mas a perna permanece ali, imperceptível, como um ferrão que apenas executa o inimigo e se recolhe, pronto para o próximo bote. Tem forma humana, embora não aja como tal; La Pulga que me desculpe, mas beleza é fundamental.

foto: joão sassi