domingo, 17 de fevereiro de 2013

A Bola nos Tempos de Outrora


O Mané Garrincha fugirá às suas tradições para receber "torcedor de elite".




Todo menino é um rei. Eu também já fui rei, e como tal, achava que tudo aquilo que havia acontecido antes do meu nascimento fosse algo muito distante de mim. Na infância, o tempo é abstrato.

Naquela época meu pai costumava falar muito da seleção brasileira, então tricampeã mundial. Aos dez anos de idade, eu já tinha alguma intimidade com os scratches de 58, de 62 e de 70. Sabia quem eram, por exemplo, o Príncipe Etíope, a Enciclopédia, o Peito-de-Aço, o Possesso, bem como o Canhotinha-de-Ouro, o Capita, a Patada Atômica e, claro, o Furacão da Copa. Sabia até mesmo que Brito, o beque-central, era o melhor preparo físico daquele time tricampeão.

A consagração no México havia ocorrido há pouco mais de uma década, ainda que no meu raciocínio infantil a magistral campanha do tri fosse coisa de muito tempo atrás. Minha única ligação com aquele espaço-tempo era, pasmem, o Rei Pelé, pelo simples fato de havê-lo visto jogar pelo Flamengo, num amistoso contra o Galo; o que nem de longe me credenciava a pensar na seleção de 70 como uma coisa próxima ao meu tempo. A TV era P&B, a antena não funcionava e eu contava somente quatro anos, mas Pelé é Pelé, e disso ninguém esquece.

Foram, entretanto, tantos e tão ricos os detalhes e informações que me foram sendo carinhosamente legados e transmitidos ao longo da infância, que sou capaz de sentir a nostalgia que meu pai um dia sentiu. É o que acaba de ocorrer, há pouco, quando assisti, pela enésima vez, ao documentário “Isto é Pelé”.

A locução grave, com caráter de história oficial, o som ambiente dos estádios ou mesmo a ausência total de ruídos em alguns gols exibidos conduzem o telespectador àquele tempo que já passou. Tempo este em que os jogadores se abraçavam desprovidos de vaidade ou malícia marqueteira, quando ainda não havia telões ou câmeras para se buscar na hora do gol (à época, um gozo coletivo). Nesse tempo, as camisas eram de algodão e as traves de madeira, quadradas. Foi um tempo em que se chorava após uma grande conquista ou grande feito alcançado – a alegria surgia antes dos dividendos, pois a seleção era formada por pessoas comuns, à feição dos que por ela torciam. Nem a ditadura conseguiu fazê-la menos brasileira.

Foi um tempo em que as emoções afloravam espontaneamente, e que teve seu ápice na participação massiva da torcida no desfecho daquela Copa, que abraçou (literalmente) o time canarinho na grande final, naquilo que se configurou numa das mais espetaculares demonstrações de afeto a uma equipe de futebol – e nem brasileiros eles eram! As bandeiras, os rojões, a chuva de papel picado e o público eufórico invadindo o campo fizeram daquela celebração uma das mais tocantes já vistas no esporte mundial, tornando o Estádio Azteca um lugar sagrado para nosso futebol. As cenas são de arrepiar os cabelos do careca.

Nos dias de hoje, mais de quatro décadas após a consagração da seleção nos gramados mexicanos, tenho para mim que esse tempo não está tão distante assim. Na verdade, ele está bem mais próximo agora do que no meu tempo de criança. Talvez porque a contemporaneidade seja palco de uma humanidade obcecada pela futilidade da vida e pelo profissionalismo dos negócios. Talvez porque, por conta disso, os jogadores tenham desaprendido a brincar de bola sem que tenham, de fato, aprendido a jogar futebol.

Trata-se de um universo diferente, formatado cotidianamente pela mídia, e não mais ancorado na tradição oral, passada de pai para filho (quando pais e filhos ainda conversavam). Nesse mundo novo, os estádios de futebol e toda a cultura local ali existente foram desintegrados, dando lugar a shoppings que, sabe-se lá por que razão, são chamados de “arenas”. Os torcedores que ali festejavam, por sua vez, foram banidos e substituídos por consumidores.

No mundo de hoje, enfim, o povo não recebe convite para a festa que ele mesmo criou. Deu lugar a torcedores europeizados que seriam mais civilizados por torcerem sentados e não se mexerem muito nas arquibancadas, além, é claro, de comprarem produtos oficiais da sua “empresa do coração”. Nesse mundo tão comportado e organizado, o tradicional modo de torcer tornou-se obsoleto. Nele, a paixão do torcedor é quantificada pelo poder de consumo daquele que a proclama.

Esses sentimentos contraditórios e melancólicos me fizeram recordar que há tempos não converso sobre a seleção com meu pai. Fico triste, principalmente por ser seu aniversário, dia de comemoração.

Sinto, porém, que nosso tempo já tenha realmente passado, e que hoje não sejamos mais do que dinossauros à espera da extinção. Lá se foi o tempo da bola, levando consigo os belos tempos de outrora. Mesmo assim, feliz aniversário, pai.


foto: joão sassi