No novo Mané, o torcedor é tratado na base do copinho plástico e sem direito a pôr-do-sol. |
Vamos analisar como foi a real inauguração do Estádio Mané Garrincha, em
Brasília.
Longe de mim querer desmerecer a decisão do certame local, mas inauguração
meia-boca não conta, sob risco de termos de meter no fiofó... Digo, nos anais
da FIFA o gol de Toinho Britadeira - impedido e com a mão -, marcado na pelada
dos operários (bem antes do tento anotado pelo Bocão, na final do Candangão
2013). E nem mesmo o Governador Agnelo, que arbitrava aquela ocasião, teve culhões
para impedi-lo de fazer sua comemoração. E ainda teve e ouvir o grito que veio lá
das arquibancadas ainda empoeiradas, de onde alguém fez ecoar pelo concreto
armado: - Frouxo!
Frouxo mesmo, porque antes de dar início à prosa, faz-se necessária uma
emblemática informação: consta que o estádio foi alugado por meros 4.500 reais
para a realização da partida – o que o GDF prefere chamar de “taxa
operacional”. Você não leu errado: um estádio que custou aos cofres públicos
1,5 bilhão foi “locado” a um espertalhão de ocasião por alguns trocados. E
pensar que neguinho ainda se dá ao luxo de pegar fila para casar na Catedral ou
na Igreja Dom Bosco... Que declassé!
Vai no Mané que é baratinho, bobo!
Pois foi exatamente o que fez um astuto e idôneo (ainda que obscuro)
empresário super antenado nos movimentos do mundo do futebol e também ligado a
decrepitudes da CBF, como Mr. Teixeeeeeeeeira: -“Bola que rola não cria limo!”
– eis o seu mantra. Baseado no andar da carruagem, pagou ao time da Vila a
bagatela de 800 mil pilas e saiu de Brasília com uma renda de 7 milhões no
porta-moedas – novo recorde nacional -, sem contar o faturamento dos bares!
Para registrar que o negócio foi bem às claras, o Peixe sequer divulgou as
credenciais do novo parceiro, e mesmo assim, a “Empresa Misteriosa” embolsou
essa fábula graças ao dinheiro público e à presença maciça do próprio público.
A julgar pela logística envolvida em aspectos primários como, por exemplo, a
venda e a troca de ingressos, o lucro foi exorbitante.
No meu caso, dispensei quase seis horas da última sexta-feira para obter
o que me pertencia a pesados custos. Percebe-se, desde já, que estádio de
primeiro mundo não quer dizer serviço de primeiro mundo. Em outras palavras,
estruturas de primeiro mundo podem muito bem servir à gananciosa mentalidade do
terceiro mundo. Não há, por estas bandas, a cultura da ética e do
comprometimento com a qualidade ofertada entre os acordos firmados. Fica tudo
no discurso emplumado e só.
As autoridades, como de costume, passaram a semana inteira desfiando as
besteiradas de sempre, repletas de informações inverossímeis e desconectadas da
realidade que todos estão vendo. Após a imprensa divulgar eventuais falhas, o
tal do secretário da farra, representante do governo local, foi capaz de negar
o que 70 mil almas testemunharam: a explosão de um rojão sob as arquibancadas
do estádio, ocorrida quase no fim da peleja: - “Recebi informações de que
nenhuma bomba explodiu no interior da Arena!”, disse ele, com a maior
cara-limpa! E disse mais: - “Se houve água fria [nos vestiários], vamos investigar!”.
Como assim, se, além dos técnicos, até o árbitro mencionou isso na súmula; e o
cara ainda lança a dúvida (se)? Assim é o mundo moderno, caro George Orwell...
Dando prosseguimento à conversa, boa parte dos arredores do complexo
esportivo está mais para canteiro de obras que para estacionamento de Copa,
principalmente a parte voltada para o autódromo Nelson Piquet e para o ginásio
Nílson Nelson. Há muito barro, poeira, brita e sujeira espalhada por todos os
lados, além de piche, entulhos, pedaços de concreto e sobras de obra; rola até
parafusos atarraxados ao asfalto, prontos para uma topadinha dedal ao cair da
noite! Adicione-se a isso a falta absoluta de placas informativas do lado de
fora e uma interminável cerca de arame que isola o Mané e que não traz qualquer
referência que oriente o torcedor – uma contradição numa capital edificada
sobre pilotis (pilastras) que permitem o trânsito livre de seus cidadãos. O
ingresso informa seu portão de entrada, o que só vale se você já passou pelo
suplício da “fila única”, do lado de fora da cerca de arame – isso não está
impresso em nenhum folheto ou parte do ingresso; nem mesmo as autoridades nos
advertiram da tal fila externa. Resultado: foram mais de duas horas entre longos
percursos em volta ao estádio, curtos passos na fila interminável e uma espera infinita,
até, por fim, voltar a sorrir.
Porém, até esse sorriso voltar ao rosto de cada um, até o grito de “Mengô!”
eclodir do peito de cada qual, quantas horas de impaciência e irritação não contaminou
a todos? Quantos filhos pequenos, cansados pela espera, de empolgados não
passaram a irritados e irritantes? A quem responsabilizar pela quebra dessa onda?
Pela dissipação dessa energia mágica dos estádios. Como ousam nos submeter à
contrariedade quando, em verdade, pagamos pela alegria e pela celebração? Quem
leva a culpa pela ausência de cantos ou demonstrações de êxtase por parte da
imensa torcida, a poucos minutos do início do jogo? Em vez disso, apenas
lamentações e reclamações saídas de bocas semicerradas e amarguradas.
Somado ao tempo que levei para trocar o ingresso, eu já carregava oito
horas de fila nas pernas, mesmo tendo gasto nababescos 160 mangos para estar
ali. Éramos milhares de mártires demonstrando nossa fé ao suportarmos,
passivamente, horas de provação sob o sol, não se incomodando ou se revoltando
por pagar, no meu caso, vinte reais por hora de fila... O Capitalismo realmente
é um troço muito lucrativo. Vale mencionar que ninguém informou aos torcedores
que toda a ala norte do complexo estaria fechada pelas instalações do canteiro
de obras, obrigando infelizes consumidores (yo,
incluso) a perderem um tempo insano para contorná-las no intuito de alcançar a “Centopéia
Maluca” - nome dado à fila quilométrica resultante da atuação incompetente e
omissa da “Empresa Misteriosa”.
Uma vez dentro, o negócio é correr para não perder o começo do jogo;
objetivo alcançado apenas por uma parte dos presentes. A visão é linda e o
estádio demonstra certa necessidade de que reconheçamos sua colossal aparência,
mas tudo fica meio forçado quando nos deparamos com uma construção ainda
incompleta. Há sujeira característica de obra inacabada, muito “concreto cru”, sinuosidades,
emendas e junções bem rústicas, além de poças d’água e certo ar de incompletude.
No bar próximo à minha ala, amadorismo total, com filas à la ancient Maracanã,
confusão, furação de fila e Brahma quente; razão pelo qual tive um piriri
monumental durante a madrugada.
As instalações internas, falam, são mais espaçosas que a média no Velho
Mundo. Ouvi dizer que lá a gringaiada se aperta e se espreme nas cadeiras,
enquanto que aqui o espaço para os ombros seria excelente. No entanto,
considerando a verticalidade das arquibancadas superiores, a espessura dos
degraus de acesso é ridiculamente estreita! Qualquer correria inesperada e o
que vai ter de flamenguista rolando arquibancada abaixo vai ser digno dos
tempos em que não tinha bondinho no morro. Para não falar do espaço pros
joelhos: um acinte! Minha mulher, na tentativa de alcançar seu assento com o
périplo já iniciado, desequilibrou-se no trajeto e se viu na obrigação de se agarrar
aos bigodes de um sujeito para não despencar lá de cima. Se os colegas não se
levantarem para dar passagem, o risco de tombo é enorme – é aguardar para ver.
Outro aspecto que merece citação negativa e incrédula da minha parte é
verificar a inépcia oficial para se fomentar a cultura nacional: durante toda a
tarde, nem um único acorde tupiniquim foi escutado pelos auto-falantes, dentro ou
fora do Mané, mas somente pop melody.
Como o futebol passou do samba ao pop? Por que querem transmitir a sensação de
que estamos nos Estados Unidos, e não no Brasil? Por que tão canhestra demonstração
de subserviência, ignorância e servilismo cultural? A droga da Copa não vai ser
realizada em solo pátrio? Não é a cultura brasileira que deveria servir de
parâmetro, pelo menos naquilo que sabemos fazer bem (música)? Mesmo assim as
colunas se curvam ante o poderio do dominador...
E olhem que de longe se escutava o espôrro, visto que a potência máxima
das caixas de som foi testada com enorme sucesso, a despeito dos tímpanos de
boa família. O nível é tal que não se pode conversar, que não na base do berro
na lapa da orêia. Ou isso, ou nos contentar em curtir um hit do Phil Collins durante o intervalo. A presença brasileira se
deu numa honrosa exceção feita ao anglicismo musical preponderante, quando, noutro
momento retrô, o mago por trás dos botões fez soar pelo estádio o “Conga-la-conga”,
da inesquecível (e ainda atual) Gretchen – considerando, é claro, que isso
possa ser classificado como música nacional. No telão de última geração, casais
flagrados em zoom se atracavam aos
beijos em meio a corações virtuais (certeza que o operador era o mesmo sujeito
que botou o Phil Collins). Era se reconhecer na tela e meter a língua na boca
da gata ao lado; uma beleza! Na plateia, nada de bandeiras, batucadas ou
demonstrações por demais abrasileiradas, a não ser, é claro, pela onipresença
de cartolinas com o logo da TV e o indefectível “filma nóis”! Bandeira, chuva
de papel higiênico, tambor e Charanga do Jaime que é bom, nécas! Viva a plateia
europeia!
É meu dever dizer, então, que o roteiro promissor não foi seguido pelos
jogadores, produzindo um espetáculo enfadonho. Lá fora, o céu se punha púrpuro,
lilás e tudo mais, ainda que muito pouco se visse cá dos assentos, dada a
insensibilidade dos projetistas. Um cuidado um pouco maior dos arquitetos
quanto à cobertura, e teríamos uma beleza clássica digna de um Coliseu ou de um
Parthenon. No campo de jogo, a grama ainda não estava bem afixada; era feio ver
aquela areia subindo a cada bicuda, algo nada digno de um estádio de Copa.
Ademais, nem mesmo a despedida sem timing
do Neymar serviu para temperar o embate que foi um verdadeiro saquinho de
pipoca. Um implacável 0x0 recaiu sobre os torcedores, emprestando ao céu da
boca de todos os presentes aquele saborzinho mezzo amaro de cabone d’umbrella, obrigando à massa insatisfeita uma
debandada para lá de desonrosa.
Dado o exposto, ratifico o proposto e afirmo que estreia meia-boca não
vale. Não deu pro Britadeira, nem pro Bocão, nem pro Neymar; ficou para a
próxima a tal da inauguração. Hão de nos convencer que estamos sendo
respeitados e bem tratados.
Caminhando a esmo, em meio aos entulhos e à poeira, ao menos me consolo
com o céu de Brasília, que continua dando espetáculo, e de graça.
foto de marcya reis