Quando se anunciou que Jorge Jesus seria o
técnico do Mengão, foi o mesmo que nada; jamais ouvira falar. Porém, mesmo
desconhecido, nada parecia pior que o time do Abelão, o que levou descrentes e
ateus como eu a aceitar Jesus no coração.
O gajo, com ares soturnos de verdugo pinçado
das masmorras de um conto medieval, chegou contestando a docilidade com que o
adepto rubro-negro se deixava entorpecer pelos ‘deuses de 81’, entregando-se
passivamente aos júbilos da Era Zico, ao passo que os caminhos rumo ao Olimpo se
esfacelavam no esquecimento. Com um agravante: o Flamengo se contentava com uma
única Liberta e um único Mundial, com a magnética passando pano e cantando que
há quarenta anos botara o Liverpool na roda! Quarenta anos, galera!
Se estacionados em andaimes rebaixados desde o
baile no time dos Beatles, subestimávamos clubes tal qual o paraguaio Olímpia
(campeão mundial e tri da Liberta), é forçoso admitir que os tubarões do pedaço
esfregassem as mãos nos confrontos de mata-mata; “Uêba! El Mengón és papa-frita!”,
deleitavam-se, bem como as piabas continentais como o América (MEX) ou o
Defensor (URU). Éramos do nível de um Argentino Jrs., de uma LDU, um Colo-colo,
um Vasco da Gama(!!!) em termos de conquistas extraterritoriais, ó, pá.
Isso até a chegada do portuga, com sua cara de
manga chupada e olhar de conquistador ultramarino. “Tá mal, Arão!”, já no
primeiro treino. “Esse é dos nossos”, pensou geral. Não era. Os “nossos”
ficaram todos pelo caminho, à exceção de um ou dois. Muito pouco. “Lutem para
que nestas paredes estejam estampados vossos rostos na próxima época”, bradou o
Odair José lusitano, chocando o Ninho do Urubu e questionando a devoção
improdutiva ao passado, quebrando o encantamento letárgico que se abatera sobre
nós desde os 3x0 no Santos, em 83, e, principalmente, extraindo o jogador do
flamengo de sua eterna zona de conforto ao defenestrar o raciocínio terceiro-mundista
de que “aqui é Mengão, o time do Zico” resolveria alguma coisa – quando, em
verdade, o manto sagrado há muito deixara de se impor aos adversários como uma
bastilha inexpugnável, senão o contrário; a mítica 10 do Galinho, símbolo
máximo do apogeu rubro-negro, agonizava, vilipendiada por Mugnis, Minhocas,
Carlos Eduardos e que tais.
E vieram os empolgantes 6x1 sobre o Goiás: meu
irmãããããããão, há quanto tempo que tu não via o Flamengo fazer tanto gol, sem
tirar o pé, e com tanta qualidade (alguém falou em 81?)? Quem viu, sabe; foi como
nascer de novo! Era aquele o ‘time de índios’ que o Abelão rechaçava? Então me
dá meu apito que já tô dando entrada na minha cidadania pindoramense! Após a peleja,
os mais atentos haveriam de ter notado que nosso Roberto Carlos ibérico era o
melhor cacique que a tribo da Gávea poderia ter. Um sonho inesperado, como um
beijo do nada surgido de um fado sofrido, para em seguida nos apaixonarmos por
aquele fiapo de homem algo bronco, mas terno, que até I LOVE YOU em libras
sabia dizer! Olêêêêê-olê-olê-olêêê, mister, mister!!!
E vieram batalhas épicas, sendo desta feita o
conquistador português um aliado, e subitamente não éramos mais nós a temer as
invasões bárbaras vexatoriamente freqüentes no solo sagrado do Maracanã, mas
muitas das outrora temidas etnias é que agora batiam em retirada, atordoadas,
engolindo cuspes e palavras, no desespero de salvarem escalpos, filhos e
vergonhas, à medida que um sentimento de confiança extrema ganhava
materialidade dentro de cada indivíduo de vermelho e preto - e já não era mais
o caso de ‘se’ venceríamos, mas de ‘por quanto’ venceríamos.
Nós, com menos de 60 anos, muito ouvíramos
sobre um tal futebol total – será que era disso que falavam? Porque eu nunca
tinha visto coisa igual. Nem tamanha simbiose entre jogadores, comissão técnica
e torcida – a diretoria, embora eficiente, deixo de fora desse caldo saboroso
porque é escrota (Garotos do Ninho?) e neofascista (Bozo?). E assim, taças, troféus,
títulos e recordes se amontoaram durante o tempo exato em que nossa fatigada
Mãe-Terra deu uma volta completa em torno ao Astro-Rei; mais canecos que derrotas.
Assombroso.
Torcer pelo Flamengo, como disse o Juca
Kfouri, passou a ser sinônimo de torcer pelo bom futebol. Línguas deletérias,
críticas e detratoras silenciaram, sobrando uns poucos recalcados a não
reconhecerem que o futebol brasileiro havia mudado, ou, como brilhantemente
definiu o renomado e célebre pensador afro-americano contemporâneo Bruno
Henrique, havia atingido “ôto patamá”. Rivais passaram a celebrar como um
título empates arrancados ao esquadrão flamenguista. Técnicos adversários caíam
como uva (essa é uma homenagem ao Queiroz) e cânones eram reduzidos a pó
enquanto vacas sagradas se viam condenadas a pastar em público. A cidade, o país
e o continente foram conquistados, mas o comandante ambicionava o mundo. Falhou
na primeira tentativa, mas o roteiro já estava pronto para 2020: campeão da
Copa do Brasil, barreira dos 100 pontos quebrada no Brasileirão, tri da Liberta
no Maraca e vitória sobre os Reds no
Mundial, again, com novo baile. Aí o
Jesus seria contratado pelo, vá lá, Barcelona, o Gallardo o substituiria e todo
mundo viveria feliz para sempre.
De repente, como no sonho pornográfico que
sempre acaba quando a bola está quicando na frente do gol, o torcedor acordou. E
também ele, que nunca havia sido tão feliz na vida; “estava no Paraíso e tive
de decidir”. Covid, solidão, família, saudades da terrinha seriam suas justas razões,
e quaisquer que tenham sido, haveriam de ser sumariamente aceitas e
respeitadas. Seu choro nos braços de Rafinha e Éverton Ribeiro, na despedida, é
revelador; ele sabe que jamais encontrará torcida como a do Flamengo, ou
atmosfera como a do Maracanã. Aliás, ele logo descobrirá que, por lá, “mister”
é protocolo, enquanto no Brasil se tornara marca registrada. Obrigado, Mister.