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Receber a taça na festa da CBF, com direito a torcida fake; pode isso, Arnaldo? |
Ouço dizer por aí que o atual sistema
de disputa do campeonato brasileiro é o mesmo sistema em voga na Europa, que
recompensa o time mais equilibrado, consistente e regular – não o eventualmente
brilhante ou aquele por vezes espetacular, mas o mais regular. E escuto, acima de
tudo, que é o sistema mais justo, os tais pontos corridos. Reflitamos sobre o que se segue.
Já se imaginou, entusiasmado
torcedor, curtindo um filminho em casa com sua mina, naquela agradável tarde de
outono, no maior dengo, e receber um telefonema do seu amigo Kabessão,
informando que seu time é campeão nacional, sendo que ele nem estava jogando?
Ou então você, eufórico jogador, minutos
após o fim do jogo, depois de marcar dois gols e vencer a partida, ter de perguntar
a um jornalista na beira do gramado se seu time já é campeão? Patético, não?
Pois de acordo com a moda vigente,
essas e outras excrescências são apenas parte das novas regras do jogo. Um jogo
indissociavelmente atrelado à cultura brasileira, mas que se distancia
paulatinamente de suas próprias raízes.
No ano passado, após a vitória do
Corinthians na penúltima rodada, o locutor Cléber Machado saiu-se com esta: “...E
aqui, uma cena curiosa: jogadores e torcedores (corintianos) permanecem no
campo e no estádio, aguardando o final do jogo do Vasco, no Rio, para ver se
são campeões ainda hoje...”. Ainda hoje?! Não sei, não, amigos, mas essa coisa
de um acontecimento aqui determinar os acontecimentos dacolá não me parecem bem
resolvidas, ainda que pretensamente “justas”.
Diga aí o fidalgo torcedor que quando
pequenino foi levado pelas mãos do pai a um estádio de futebol pela primeira
vez na vida; prometeu-lhe então o velho, justiça ou emoção?
E nós, brasileiros, apaixonados pelo
esporte, tido como adoradores e uma espécie de re-criadores futebol, o que queremos
ao torcer pelo nosso time? Deitar serenamente a cabeça sobre o travesseiro,
conformando-se com o resultado do prelo (“foi justo”) ou ir para o bar encher a
cara e xingar o juiz de safado, ladrão e desgraçado porque não deu mais do que três
minutos de acréscimo (“filadaputa!”)? Ganhar uma final ou ser campeão com
quatro rodadas de antecedência? O que tem mais a ver com a essência daquilo que
efetivamente nos constitui como brasileiros?
Não, amigo leitor, não se trata de
mera divagação. Estou falando de cultura e me referindo àquilo que fazemos com
o que foi feito da gente; que nos constitui e é, por nós, reciprocamente constituído.
Estou falando do que está onde deveria estar no cosmos interior de cada um de
nós. Algo que, em cada povo, em cada sociedade, adquire um sentido todo
próprio; um simbolismo que nos identifica e representa aos olhos do outro, e
aos nossos também.
A defesa da honra, por exemplo, é uma
característica nobre do povo japonês e que o identifica mundo afora. Conosco,
inversamente, é o jeitinho brasileiro que nos dá cara por aí. São, enfim,
características simbólicas de dois povos distintos, frutos do meio em que
habitam, da história que escreveram e da contemporaneidade.
Certa vez, fiquei pasmo ao ver um
turista japonês comendo uma alga marinha colhida num deque, em Veneza. O
cidadão fez que ia e eu pensei “ele não vai fazer isso”; ele fez: desceu umas
escadinhas, ajeitou a câmera fotográfica de lado, agachou-se à beira d’água,
encheu a mão com uma coisa verde e “gloc”, virou garganta adentro. Como devia
estar banhada a óleo diesel, o japa fez uma cara horrível. Tirante a poluição
do mar na área do cais, não haveria para ele qualquer razão para estranhamento.
É tudo uma questão de diferença cultural.
Essas historinhas me vêm à mente à
medida que tento compreender o porquê de se insistir tanto em aplicar este conceito
– o de justiça - que, conquanto seja bem-vindo, não é o propósito da nossa
investida. Há total coerência nos argumentos daqueles que dele se utilizam para
defender o sistema de pontos corridos, isso não nego, mas como levá-los em
conta se a ótica sob a qual discuto o futebol é completamente outra?
A disputa, nesse caso, não é buscar
pelo que é mais justo, mas pelo que é mais adequado aos nossos anseios enquanto
torcedor. Eu não consigo travar um diálogo abordando o assunto como se fôssemos
parte de um júri, e não de uma torcida – a diferença é grande. Não o fosse, não
haveria prêmio da crítica e prêmio do público, posto que este seja produto da
emoção, enquanto que aquele adquire autoridade por advir da razão.
Um exemplo do mencionado
distanciamento entre o futebol de hoje e nossas raízes culturais pode ser visto
na padronização daquilo que a FIFA chama “fan” (torcedor). Não dá para uma empresa
impor seu modo de assistir e torcer nos estádios simplesmente porque uma classe
de babacas acha que só há civilidade no Velho Mundo. Desconhecem a riqueza das
culturas periféricas que já se foram e se vão, ainda hoje, ao sabor do mercado global,
compreendidas agora como parte da engrenagem de um sistema que só os reconhece
na condição de consumidores. Somos a pilha da Matrix.
Quem, em sã consciência futebolística,
poderia, por exemplo, imaginar a Copa de 78, na Argentina, sem aquelas
verdadeiras tempestades de papel picado nas arquibancadas? Ou o Maracanã
lotado, mas sem bandeiras, tambores, foguetes, fumaça e os papeis higiênicos em
cascata, quando em seus tempos áureos? Ou sem a geral? O que querem os gringos, afinal?
Que passemos a aplaudir as jogadas, sentadinhos, ao estilo dos europeus? E que
façamos, uh, oh, ahhh, como se compuséssemos a platéia de um anfiteatro grego?
Não é o caso. Não é esse o nosso papel.
Somos aquela gente mestiça, misturada
e mal-vestida que habita os trópicos. Fazemos parte de uma Nação que se
constituiu tropegamente, ao ritmo das investidas imperialistas e da falta de
amor pátrio de nossos governantes, mas que mesmo assim enxerga a vida como um
delírio a ser usufruído continuamente em forma de cores, músicas e contato
físico. Precisamos das festas populares e de nossas tradições para ratificar
tal condição. Por isso o Carnaval e o futebol nos são tão caros e
representativos.
Os exemplos para reflexão contidos no
início do texto são reais. O primeiro se deu em 2009, quando o torcedor do
Barcelona, que só jogaria dali a dois dias, viu seu time se tornar campeão sem entrar
em campo, por conta da derrota do Real Madrid, no sábado (leia a matéria). O outro caso se deu este ano, com
o atacante Fred, do Fluminense, logo após a vitória sobre o Parmêra; o
artilheiro come-quieto só gritou “é campeão!” após alguém da imprensa
autorizá-lo: “Nenhum dos jogadores sabia que era campeão até os jornalistas
confirmarem, Galvão!” – informou o eficiente repórter da Rede Globo, como se o
fato fosse mais engraçado que ridículo. Isso para não falar do Corinthians,
campeão em 2005 jogando fora de casa e perdendo pro Goiás – nada mais
anticlímax. Levou a taça por conta da derrota do Inter, segundo colocado.
Enfim, acredito na beleza de uma
decisão de campeonato com todos os perigos e percalços inerentes a ela, com
toda a expectativa que se cria em torno a uma grande final. Mesmo com
inferioridade de um dos oponentes, em piores condições na tabela ou no campo que
o adversário, o que, em caso de vitória, contribui para expurgar o complexo de vira-latas
que habita cada coração brasileiro. Eu acredito na presença de duas torcidas
eufóricas, provocando e aguçando a rivalidade sadia que faz de todos nós irmãos
de fé, fiéis de uma mesma religião chamada futebol.
Gosto da disputa que dá frio na
barriga, do olhar nervoso para o relógio, do alívio pela bicuda do zagueiro, do
grito contido pela cabeçada perigosa do artilheiro ou da redenção pela
espetacular defesa do arqueiro. Gosto da tristeza momentânea que, entre cantos
e cânticos, torna-se pranto. Que vira apreensão, gol, estrondo, vibração.
Quero ver meu time campeão dentro de
campo, dando a volta olímpica, recebendo a taça e celebrando no estádio, com a
torcida presente, em festa, carnavalescamente, conforme manda meu imaginário e
em estrita concordância com aquilo que reza e preza a cultura do meu país. E sair
dali em direção ao infinito, sabendo que o campeonato acabou, e que temos novos
heróis e novos vilões, sem essa de “ainda há muita coisa em jogo”; acabou,
acabou!
Nosso improviso e espontaneidade não
comportam a frieza dos protocolos ou a empáfia dos justos. A cada ano, a cada
final sem final, a cada ritual abortado, a cultura brasileira é, sem dúvida, a
grande derrotada.