sábado, 23 de novembro de 2019

Os Libertadores da América


    
Os conquistadores alinhados; há que sobrepujá-los para chegar ao Olimpo.

    Copa Libertadores da América – a "glória eterna" almejada por dez em cada dez equipes sul-americanas. É a maior conquista regional que se pode alcançar. Há outras copas por aí até mais importantes, seja pela qualidade dos participantes, seja pelos cifrões envolvidos na contenda, tais como a Copa do Mundo da FIFA ou a Copa dos Campeões da Europa (atual Champions League), mas nenhuma delas possui o etos libertário que nosso torneio apresenta, como enseja a própria nomenclatura: “Libertadores da América”!

    Talvez, o caráter nebulosamente amador que imperou até meados dos anos 90, recheado de doping, violência em campo e pressão anti-desportiva extra-campo, tenha empregado uma carga extra de heroísmo às conquistas da Liberta, cuja imagem mais emblemática, para mim, é a do uruguaio Hugo de León, capitão gremista em 83, erguendo a taça, com sangue escorrendo pelo rosto, como um boxer.  A cena não deixa dúvidas quanto ao estoicismo e à superação envolvidos na árdua caminhada até a vitória. O vencedor simbolicamente extirpa o mal presente em nosso continente, reconquistando a América, tal como fizeram os homenageados pelo torneio, que um dia se sublevaram da condição de conquistados para derrotar seus opressores. 

    Hoje o Flamengo encarna a figura do cativo rebelde. Cativo porque configurado por uma imensa Nação de torcedores - em sua maioria pretos, pardos e desfavorecidos - ainda hoje exterminados pelos conquistadores em batalhas cotidianas desiguais.  Calhou do oponente, o River Plate (los millonarios), espelhar imagem oposta; elitista e alva, como o uniforme  A equipe carioca é urubu, enquanto a portenha, gallina (blanquita, por supuesto). E se o Boca é a argentina autóctone, travestida em Don Diego, o River é um principado, com Enzo Francescoli representando aquela parcela cisplatina que se julga européia, embora tenha nascido no ‘continente errado’.

    Passados alguns séculos, a América Latina encontra-se sob considerável jugo imperialista, num anacronismo indesejável para os povos daqui. A Região está em ebulição. Os conquistadores contemporâneos, também brancos, loiros e autoritários, novamente tramam contra a existência das populações que ostentem tonalidades de pele diferentes das suas, e novamente apelam a um deus cristão e às armas para fazê-lo. O genocídio é declarado em documentos oficiais que autorizam os agentes do Estado a matarem, indiscriminadamente, como no tempo das caravelas. 

    Não há, pois, como dissociar a batalha campal de Lima, logo mais, da realidade dessas pessoas que, no mesmo instante, estarão pelas ruas da Bolívia, do Chile, do Equador, da Colômbia e, logo, do Brasil, lutando e morrendo pela autonomia de suas respectivas nações. Não se pode esquecer o porquê da taça levar este nome que, em última instância, é o porquê da independência conquistada por vários países sul-americanos.

    Que o Flamengo, hoje, se livre de alguns tentáculos reacionários que por ora o adornam, e assuma sua condição de legítimo representante do povo latino-americano, libertando-o do sofrimento que já dura quase 40 anos! Que o Flamengo encarne Bolívar, Martín, Guevara, Bonifácio, como também Zapata, Sandino e Zumbi (!), e tantos outros! Este Flamengo, imenso e multicultural, que desperta o interesse do próprio ‘conquistador’ ao ser televisionado para vários países do Velho Continente que verão a final da Liberta pela primeira vez em canal aberto; este Flamengo que deve tudo o que tem às arquibancadas e às gerais do antigo Maracanã, aos desdentados; este Flamengo que alenta a tragédia diária promovendo festas nas favelas; é este o Flamengo que queremos ver em campo. Que nossos jogadores tenham a consciência da grandiosidade de sua missão, pois agora seremos nós a conquistar as Américas e, depois, o mundo. Seu povo pede de novo...
   

imagem e edição: joão sassi

domingo, 27 de outubro de 2019

Torcedor do Flamengo: A Felicidade Existe?

Galera reunida após longo e tenebroso inverso; futebol é união.

    Foi como o amor: não se sabe muito bem como se deu ao certo, embora se bem saiba agora que muito certo se deu. As mais belas projeções não seriam capazes de predizer o que sente um adepto rubro-negro no atual estágio da temporada; tão ou mais feliz que um adolescente defronte o espelho se arrumando para ir passar uns dias enfurnado na casa da namorada cujos pais pegaram o último avião para o Nepal – sentiram a intensidade da emoção?

    Se o Mourinho fosse o portuga escolhido, haveria festa e a magnética se daria por satisfeita em ganhar o Brasileirão do Parmêra, na rodada derradeira, por um ponto, e chegar à final da Liberta, ainda que sem favoritismo, tendo ganhado muitas partidas por 1x0, sem encantar. Caso fosse El Cholo Simeone, idem. Com o Guardiola ou o Klopp (meu sonho de consumo), as expectativas cresceriam quanto aos placares e quanto ao ‘jogo bonito’, embora sem a projeção de um time tão aniquilador e encantador (afinal, o Fla não é o Barça ou o Liverpool). Mas quando se anunciou Jorgito Jesus Christ no comando, no que teriam pensado os torcedores do Flamengo? Eu mesmo pensei pitufas, senão um ‘Glória a Deux; melhor que o Abelão ele deve ser!’, pois não tinha a menor idéia de quem era ou do que ele poderia fazer pelo Mengão. Cheguei mesmo a suspeitar que pudesse ser uma barca furada, como foram as naus portuguesas que por estas paragens abarcaram em tempos recentes.

    Mas Jesus veio e, em parcos quatro meses (o que são quatro meses, galera?), transformou a rala e salobra água rubro-negra em denso e inebriante vinho do Porto, doutrinando jogadores, multiplicando gols, recordes e vitórias, convertendo jornalistas e santificando antigos pecadores aos olhos de devotos torcedores. Sabíamos que tínhamos potencial para produzir algo de qualidade, muito embora fosse imperioso admitir que nem mesmo a hiperbólica percepção de um Nelson Rodrigues colocaria o Flamengo nos píncaros do ludopédio continental em que ora se encontra.

    Há quanto tempo você, torcedor de qualquer clube, não tem a escalação de seu time na ponta da língua? Vou além; qual a escalação de seu time quando do último título conquistado? Qual foi a última vez que seu time ‘fez história’ ou ‘marcou época’? Admitamos: a maioria nem sabe o que é isso, pois conta-se nos dedos de uma mão as esquadras que atingiram esse patamar nos últimos 150 anos de futebol jogado em solo tupiniquim. Só Santos e o São Paulo chegaram lá, além de nós.

    Entenda-se ‘chegar lá’ por dominar a cidade, o país, o continente e o mundo, colocando na roda os campeões da Champions, na final do Interclubes (atual Mundial de Clubes), como fizeram Pelé com o Benfica e Telê Santana com o Barça e o Milan. O Flamengo de Zico completa essa tríade; fomos os fodões do Bairro do Peixoto... 38 anos atrás! De lá para cá, sequer uma final continental voltamos a disputar, ao contrário dos dois paulistas, que voltaram e conquistaram novamente a Liberta, mesmo sem esquadrões foras-de-série como os de outrora. Isso nos coloca como um clube mediano no imaginário do torcedor, mundo afora. Quando não, totalmente insignificante – apesar do Zico!

   "Somos um Argentinos Juniors da vida; ninguém bota fé, fora os próprios torcedores, os iludidos assumidos."


    ‘Descobri’ isso num taller de periodismo entre jornalistas latino-americanos, em Cuba, em 2001 - portanto duas décadas após o baile em Tóquio. Ostentando o Manto Sagrado pelo salão, percebi que não causava qualquer sensação. Um equatoriano até sabia quem tinha sido o ‘Grande Zico’, mas não o Flamengo. Foi quando caiu a ficha de que meu Mengão fuderosão tricampeão (o Pet havia marcado o gol de falta naquela semana) não tinha qualquer representatividade ou reconhecimento no continente americano. Ou você, querido flamenguista, reconheceria o Argentinos Juniors como potência futebolística? Por que não? Os caras também foram campeões da Liberta na primeira participação deles (1985) e produziram um gênio da raça (Maradona), enquanto nós fizemos o mesmo em 1981 e revelamos o Zico. Sacaram? Somos um Argentinos Juniors da vida; ninguém bota fé, fora os próprios torcedores, os iludidos assumidos. Tudo bem que ganhamos umas copinhas do Brasil lá e cá, e outros tantos brasileirões aqui e acolá, mas e daí? Quem liga? Pior: chegando a algumas decisões como azarão (1992 e 2009)! São conquistas gostosas, mas pontuais; aliás, foras da curva (e nossa curva tende à mediocridade).

    Jorge Jesus está mudando isso. Hoje o nome do Flamengo corre pelos sete mares do Planeta. Ganhando a Libertadores e, sim, o Mundial, na negra do Liverpool, teremos assegurada nossa volta ao Olimpo, o que não estaria garantido somente pelas conquistas, senão pela forma encantadora como joga nosso time.

    O flamenguista, sem perceber, está finalmente se divorciando do paradigma de 81, ano do futebol-total, como quem deixa finalmente de pensar num antigo romance, seja por obra do tempo, seja pela aparição de um novo amor. Hoje, o flamenguista é aquele sujeito feliz e apaixonado, tal qual o adolescente do início do texto, mas não somente por estar próximo à consagração total, ou por ter sua paixão plenamente correspondida, senão por saber que ela, a paixão, pulsa em mais de quarenta milhões de corações, além de outros milhares, recém-convertidos, que têm se deixado encantar pela apoteose do Mais Querido. Como nos ensinou o jovem libertário estadunidense Cristopher McCandless - inspiração para o célebre livro ‘Na Natureza Selvagem’, de Jon Krakauer -: “a felicidade só existe quando é compartilhada”.

    Oh, meu Mengão, eu gosto de você; quero cantar ao mundo inteiro a alegria de ser rubro-negro...