quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Disputa entre Galo e Raposa dá Bode

CANUTTO: E você, Bode, que que achou? // BODE: Cachorro?! Que cachorro, o quê? Eu não sou cachorro, não!


Tenho uma amiga sofredora que, certa feita, me ligou do Maracanã, onde assistia o seu Botafogo perder, só para me dizer que ela estava de frente para a torcida do Flamengo – e que era a coisa mais linda que ela já tinha visto.

Decerto, a presença da torcida adversária - devidamente achincalhada pela torcida vitoriosa, sob silvos, urros, vaias e chacotas intermináveis (sempre dentro dos limites cavalheirescos perpetrados pelo jogo, claro) – abrilhanta qualquer partida, além de fortalecer a ideia de que o esporte seja apenas uma forma recreativa que simula o conflito, não devendo prevalecer o interesse em eliminar ou acabar com o adversário, fisicamente.  – “Ser espectador de um esporte é um mecanismo que desenvolve a consciência de união das pessoas. Paradoxalmente, o esporte contribui para a união ao enfatizar o conflito entre as partes” - proferiu a socióloga norte-americana Janet Lever, em seu livro A Loucura do Futebol (Record)

Aos exasperados da bola (profissionais, amadores ou espectadores), a vida não teria completude e sentido se, em seu transcurso, não houvesse já programada uma grande final de campeonato ganha sobre o arqui-rival, nos estertores de uma batalha dada por perdida. O gol do campeonato! O delírio em campo! Os torcedores explodindo em loucura, lá das arquibancadas (ou da Geral!), em fraternal comunhão com milhares de anônimos!...  - Quem não sonhou com um momento assim, tendo a torcida adversária por testemunha, num estádio lotado?

Indiferente aos sonhos da maioria, porém, a diretoria do Atlético Mineiro preferiu disputar a primeira partida da Final da Copa do Brasil deste ano em campo diminuto (Independência), indigno para um clássico de tamanha envergadura, história e importância contextual. Ato contínuo, um entrevero entre os rivais, suscitado por recomendações da Polícia Militar e proibições judiciais, fez com que o Cruzeiro abrisse mão de sua já ínfima cota de ingressos, decretando que apenas as cores do Galo estariam presentes às arquibancadas do estádio. Ô, tristeza sem fim para nosso futebol...

Mais ainda para monstros sagrados como Tostão, que diz não entender o motivo do clássico se realizar a meia-bomba: - “Isso é um atestado de falência da sociedade e dos governos, incapazes de combater a violência urbana, no futebol e fora dele”, disse o mestre, inconformado com a bestialidade em curso.

Para o bem do esporte, o mesmo nobre princípio que equilibra e dá ordem à relação conflituosa entre adversários no campo de jogo deveria se aplicar a todos os que compõem o espetáculo; especialmente aos torcedores, que bancam todo o circo, em escala global. E não somente quanto à proteção destes, mas, inclusive, no sentido de garantir totais condições para que o embate esportivo se dê também entre eles, possibilitando a presença de torcidas antagônicas e proporcionando uma rivalidade tão saudável como pedagógica em todos os jogos, sobretudo nos clássicos, quando a paixão atinge o ápice. Deveria ser uma questão de Estado, pois diz respeito ao esporte mais praticado no planeta Terra, cuja seleção de maior expressão e respeito é a brasileira (ou costumava ser).

O combate à ignorância e à selvageria não deveria se dar nas ruas (e muito menos nos estádios!), mas nas salas de aula, em campos e quadras espalhados pelo país, oferecendo aos jovens, praticantes ou não, a exata noção do zelo que devemos ter por valores vitais à sociedade, como a tolerância, a aceitação e o respeito à diversidade.

É vergonhoso que, governo após governo, o esporte nacional, inestimável instrumento de coesão social e promovedor de alianças e aproximações culturais as mais diversas, em nível mundial, venha sendo deixado de lado e tratado como coisa pequena no que diz respeito a sua função social, embora cada vez mais como grande negócio, quando os interessados são poderosas multinacionais exploradoras do trabalho infantil, xeiques trilhardários ou meros ditadores – a eles, o tapete vermelho, o Brasão e as cores nacionais – e o Hino, de lambuja!

A presença de interesses inconciliáveis (somente uma agremiação sairá vencedora), representados pelas torcidas rivais num estádio de futebol, deveria ser obrigatória por conta da própria natureza do esporte, segundo a qual um rival forte é mais apreciado que um fraco; rivalidade esta que se dá, tanto e mais, se houver espaço para embates simbólicos que extrapolem as quatro linhas, enfatizando as diferenças clubísticas e enaltecendo o sentimento de cada torcida em relação ao seu time. 

O extermínio daquilo que nos é distinto representa a morte da nossa maior fonte cultural de estímulo e paixão, e também uma sociedade mais violenta e desequilibrada. Em seu quadro clínico-político vegetativo, no entanto, o Estado brasileiro segue desprovido de qualquer ideia ou ação que favoreça o bem-estar comum.

Por ora, enquanto perdurar o pensamento unidirecional das massas de que é impossível conviver com "o diferente", e até quando não se sabe, o futebol brasileiro será apenas um sonho que se sonha só, desprovido de essência, cada vez mais alienado e alienante, distante como nunca de suas raízes multiétnicas de mistura e paz, união e celebração. Povo sem cultura é povo escravizado.

PS: Penso em Manoel de Barros e só consigo sorrir, mesmo com sua escapulida da vida. Viva o poeta. 

foto: joão sassi                                                 
@BorogodoFC