terça-feira, 27 de novembro de 2012

Pontos Escorridos

Receber a taça na festa da CBF, com direito a torcida fake; pode isso, Arnaldo?

Ouço dizer por aí que o atual sistema de disputa do campeonato brasileiro é o mesmo sistema em voga na Europa, que recompensa o time mais equilibrado, consistente e regular – não o eventualmente brilhante ou aquele por vezes espetacular, mas o mais regular. E escuto, acima de tudo, que é o sistema mais justo, os tais pontos corridos.  Reflitamos sobre o que se segue.


Já se imaginou, entusiasmado torcedor, curtindo um filminho em casa com sua mina, naquela agradável tarde de outono, no maior dengo, e receber um telefonema do seu amigo Kabessão, informando que seu time é campeão nacional, sendo que ele nem estava jogando?


Ou então você, eufórico jogador, minutos após o fim do jogo, depois de marcar dois gols e vencer a partida, ter de perguntar a um jornalista na beira do gramado se seu time já é campeão? Patético, não?


Pois de acordo com a moda vigente, essas e outras excrescências são apenas parte das novas regras do jogo. Um jogo indissociavelmente atrelado à cultura brasileira, mas que se distancia paulatinamente de suas próprias raízes.


No ano passado, após a vitória do Corinthians na penúltima rodada, o locutor Cléber Machado saiu-se com esta: “...E aqui, uma cena curiosa: jogadores e torcedores (corintianos) permanecem no campo e no estádio, aguardando o final do jogo do Vasco, no Rio, para ver se são campeões ainda hoje...”. Ainda hoje?! Não sei, não, amigos, mas essa coisa de um acontecimento aqui determinar os acontecimentos dacolá não me parecem bem resolvidas, ainda que pretensamente “justas”.


Diga aí o fidalgo torcedor que quando pequenino foi levado pelas mãos do pai a um estádio de futebol pela primeira vez na vida; prometeu-lhe então o velho, justiça ou emoção?


E nós, brasileiros, apaixonados pelo esporte, tido como adoradores e uma espécie de re-criadores futebol, o que queremos ao torcer pelo nosso time? Deitar serenamente a cabeça sobre o travesseiro, conformando-se com o resultado do prelo (“foi justo”) ou ir para o bar encher a cara e xingar o juiz de safado, ladrão e desgraçado porque não deu mais do que três minutos de acréscimo (“filadaputa!”)? Ganhar uma final ou ser campeão com quatro rodadas de antecedência? O que tem mais a ver com a essência daquilo que efetivamente nos constitui como brasileiros?


Não, amigo leitor, não se trata de mera divagação. Estou falando de cultura e me referindo àquilo que fazemos com o que foi feito da gente; que nos constitui e é, por nós, reciprocamente constituído. Estou falando do que está onde deveria estar no cosmos interior de cada um de nós. Algo que, em cada povo, em cada sociedade, adquire um sentido todo próprio; um simbolismo que nos identifica e representa aos olhos do outro, e aos nossos também.


A defesa da honra, por exemplo, é uma característica nobre do povo japonês e que o identifica mundo afora. Conosco, inversamente, é o jeitinho brasileiro que nos dá cara por aí. São, enfim, características simbólicas de dois povos distintos, frutos do meio em que habitam, da história que escreveram e da contemporaneidade.


Certa vez, fiquei pasmo ao ver um turista japonês comendo uma alga marinha colhida num deque, em Veneza. O cidadão fez que ia e eu pensei “ele não vai fazer isso”; ele fez: desceu umas escadinhas, ajeitou a câmera fotográfica de lado, agachou-se à beira d’água, encheu a mão com uma coisa verde e “gloc”, virou garganta adentro. Como devia estar banhada a óleo diesel, o japa fez uma cara horrível. Tirante a poluição do mar na área do cais, não haveria para ele qualquer razão para estranhamento. É tudo uma questão de diferença cultural.


Essas historinhas me vêm à mente à medida que tento compreender o porquê de se insistir tanto em aplicar este conceito – o de justiça - que, conquanto seja bem-vindo, não é o propósito da nossa investida. Há total coerência nos argumentos daqueles que dele se utilizam para defender o sistema de pontos corridos, isso não nego, mas como levá-los em conta se a ótica sob a qual discuto o futebol é completamente outra?


A disputa, nesse caso, não é buscar pelo que é mais justo, mas pelo que é mais adequado aos nossos anseios enquanto torcedor. Eu não consigo travar um diálogo abordando o assunto como se fôssemos parte de um júri, e não de uma torcida – a diferença é grande. Não o fosse, não haveria prêmio da crítica e prêmio do público, posto que este seja produto da emoção, enquanto que aquele adquire autoridade por advir da razão.


Um exemplo do mencionado distanciamento entre o futebol de hoje e nossas raízes culturais pode ser visto na padronização daquilo que a FIFA chama “fan” (torcedor). Não dá para uma empresa impor seu modo de assistir e torcer nos estádios simplesmente porque uma classe de babacas acha que só há civilidade no Velho Mundo. Desconhecem a riqueza das culturas periféricas que já se foram e se vão, ainda hoje, ao sabor do mercado global, compreendidas agora como parte da engrenagem de um sistema que só os reconhece na condição de consumidores. Somos a pilha da Matrix.


Quem, em sã consciência futebolística, poderia, por exemplo, imaginar a Copa de 78, na Argentina, sem aquelas verdadeiras tempestades de papel picado nas arquibancadas? Ou o Maracanã lotado, mas sem bandeiras, tambores, foguetes, fumaça e os papeis higiênicos em cascata, quando em seus tempos áureos? Ou sem a geral? O que querem os gringos, afinal? Que passemos a aplaudir as jogadas, sentadinhos, ao estilo dos europeus? E que façamos, uh, oh, ahhh, como se compuséssemos a platéia de um anfiteatro grego? Não é o caso. Não é esse o nosso papel.


Somos aquela gente mestiça, misturada e mal-vestida que habita os trópicos. Fazemos parte de uma Nação que se constituiu tropegamente, ao ritmo das investidas imperialistas e da falta de amor pátrio de nossos governantes, mas que mesmo assim enxerga a vida como um delírio a ser usufruído continuamente em forma de cores, músicas e contato físico. Precisamos das festas populares e de nossas tradições para ratificar tal condição. Por isso o Carnaval e o futebol nos são tão caros e representativos.


Os exemplos para reflexão contidos no início do texto são reais. O primeiro se deu em 2009, quando o torcedor do Barcelona, que só jogaria dali a dois dias, viu seu time se tornar campeão sem entrar em campo, por conta da derrota do Real Madrid, no sábado (leia a matéria). O outro caso se deu este ano, com o atacante Fred, do Fluminense, logo após a vitória sobre o Parmêra; o artilheiro come-quieto só gritou “é campeão!” após alguém da imprensa autorizá-lo: “Nenhum dos jogadores sabia que era campeão até os jornalistas confirmarem, Galvão!” – informou o eficiente repórter da Rede Globo, como se o fato fosse mais engraçado que ridículo. Isso para não falar do Corinthians, campeão em 2005 jogando fora de casa e perdendo pro Goiás – nada mais anticlímax. Levou a taça por conta da derrota do Inter, segundo colocado.


Enfim, acredito na beleza de uma decisão de campeonato com todos os perigos e percalços inerentes a ela, com toda a expectativa que se cria em torno a uma grande final. Mesmo com inferioridade de um dos oponentes, em piores condições na tabela ou no campo que o adversário, o que, em caso de vitória, contribui para expurgar o complexo de vira-latas que habita cada coração brasileiro. Eu acredito na presença de duas torcidas eufóricas, provocando e aguçando a rivalidade sadia que faz de todos nós irmãos de fé, fiéis de uma mesma religião chamada futebol.


Gosto da disputa que dá frio na barriga, do olhar nervoso para o relógio, do alívio pela bicuda do zagueiro, do grito contido pela cabeçada perigosa do artilheiro ou da redenção pela espetacular defesa do arqueiro. Gosto da tristeza momentânea que, entre cantos e cânticos, torna-se pranto. Que vira apreensão, gol, estrondo, vibração.


Quero ver meu time campeão dentro de campo, dando a volta olímpica, recebendo a taça e celebrando no estádio, com a torcida presente, em festa, carnavalescamente, conforme manda meu imaginário e em estrita concordância com aquilo que reza e preza a cultura do meu país. E sair dali em direção ao infinito, sabendo que o campeonato acabou, e que temos novos heróis e novos vilões, sem essa de “ainda há muita coisa em jogo”; acabou, acabou!


Nosso improviso e espontaneidade não comportam a frieza dos protocolos ou a empáfia dos justos. A cada ano, a cada final sem final, a cada ritual abortado, a cultura brasileira é, sem dúvida, a grande derrotada.