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Quem não gosta de Samba, bom sujeito não é... |
Fingindo que está tudo bem e que uma
Copa do Mundo seja somente motivo de júbilo e alegria, venho assistindo aos
filmes oficiais de edições passadas pra já ir “entrando no clima de festa”. Os
arquivos de imagens anteriores à dolorosa edição do IV Campeonato Mundial de
Futebol (Brasil-50) não são generosos. A partir de então, no entanto, dada a
crescente qualidade de técnicas e equipamentos de filmagem, pode-se fazer uma
curiosa viagem pelo futebol de antigamente, e também pelos meandros que
circundaram os mundiais seguintes, suscitando saudosas ilações.
Em meio a muitas partidas
inexpressivas entre seleções igualmente incipientes, ficamos no aguardo de
alguma peleja envolvendo o Brasil, ocasião em que se espera uma espécie de
reverência imediata a quaisquer dos nossos craques. Em pouco tempo, porém,
damo-nos conta de que esse reconhecimento não irá ocorrer e que a ignorância a
nosso respeito é total. Quando muito, um elogio minguado, mas nunca uma
descrição fiel àquela que permeia o imaginário brasileiro.
Didi, por exemplo, é um dos poucos que mereceu
alguma reverência no filme sobre o Mundial de 58, na Suécia, cabendo a Pelé
receber a alcunha de menino-prodígio – algo bem gay, diga-se. Os demais
campeões são quase que completamente ignorados, (Nilton Santos e Garrincha,
inclusos). Como menção honrosa sobre o desconhecimento acerca do Brasil,
registre-se que a bandeira hasteada no mastro do hotel que primeiro recebeu a
delegação brasileira em terras nórdicas era a de Portugal; pode isso, Joaquim!
Sobre Mané, aliás, percebe-se que ele é
um mero desconhecido para a autoridade máxima da burocracia da bola, sendo
descrito como “aquele que só sabe quem é o adversário quando entra em campo” para,
por fim, ser comparado ao ex-craque driblador bretão Stanley Mathews. O etnocentrismo
é tal que, mesmo com duas Taças de Campeão do Mundo no currículo, a referência continua sendo o
gringo, e não Garrincha! Isso tudo, em pleno Mundial do Chile-62, quando, sem a
companhia de Pelé, o mais famoso ponta-direita da história fez não somente o
sol carioca brilhar sobre os Andes, mantendo a Jules Rimet em casa, como até
gol de cabeça e de canhota! Para a FIFA, no entanto, o nome de Garrincha parece
ser tão irrelevante como o de qualquer um seus Joões deixados estatelados pelos
campos, mundo afora...
Detalhe curioso é notar que as participações
dos scratches brasileiro nos filmes sejam
veiculadas com um onipresente e latiníssimo Mambo ao fundo! Quando não, Salsa.
Há também cenas dos jogadores brasileiros na concentração com a inserção de um
acompanhamento mais regional: música andina! Alguém tem noção do por quê? Será
possível que Zé Carioca y sus amigos
participaram da escolha da trilha sonora? A FIFA não gosta de Samba? Vai
saber...
A partir da Inglaterra-66, as imagens
ganham ainda mais qualidade, e os uniformes, cores com texturas exuberantes!
Com o registro de imagem e a captação de áudio feitos à beira do gramado, pode-se
escutar o som ambiente em sua totalidade, composto pelos gritos dos jogadores,
chutes na bola, apitos e, principalmente, pelo alarido da comportada torcida
inglesa, com suas aristocráticas palmas a cada lance, além dos indefectíveis
“ahhhhs” e “ohhhhs”, já presentes nos estádios desde os tempos de antanho.
Um chute a gol, uma defesa, um drible,
tudo deve ser aprovado ou não pelo espectador por meio das palmas. Nesse
modelo, o torcedor se comporta majoritariamente de maneira passiva, reagindo
àquilo que vê em campo, pouco contribuindo para ser também um ator ativo do
espetáculo em curso – não por acaso, exatamente o modelo aristocrático que
“muita gente” quer ver implementado nos estádios brasileiros, durante e após a
Copa do Mundo "do Brasil". Deve ser porque gente comportada sempre tem mais dinheiro para
gastar. Como bônus, é suprimida qualquer forma de expressão popular mais
espontânea. A FIFA nos quer como consumidores desse produto, não como parte
dele (we shall not forget the Matrix, fellows).
Nesse sentido – e a despeito das belas
imagens da Copa de 66 -, chama a atenção a narração empolada, bem como a
peculiar percepção européia do evento, que interpreta o estádio como um grande
teatro, embora com escasso enfoque ao aspecto emocional de seus atores, e muito
mais a aspectos comportamentais e factuais aplicados às regras do jogo – algo totalmente
diferente àquilo a que estamos acostumados. Não há referências à subjetividade subjacente à atitude dos jogadores numa disputa de bola,
senão uma descrição ipsis literis do
que se passa em campo. Definitivamente, não há fantasia na visão FIFA do
futebol. A julgar pela última edição do manual da entidade, nota-se que esses senhores
não entendem patavina de antropofagia, ou não se ofenderia tanto a cultura
local com suas imposições tanto descabidas quanto desrespeitosas. Após a Copa, o brasileiro terá de reinventar o futebol, tal como o fez no passado, a ver se recupera sua alegria.
Mas voltando à vaca fria, o último filme que vi foi sobre a Copa do México-70. Nele, Pelé
já é, enfim, tratado como “Rei do Futebol”, enquanto os demais jogadores tem
pouco ou nenhum destaque. Exceção feita ao arqueiro Félix, vítima de chacota e
gozações sem fim por parte da locução oficial; motivos para os quais,
convenhamos, não faltaram.
Tenho para mim, que a Copa de 70 marcou o
fim da Era Lúdica do futebol, simbolizada pela fantástica harmonia resultante
da interação entre o amarelo-solar dos brasileiros e o azul-real dos italianos,
tendo como partícipe a pulsante e multicolorida torcida mexicana. Nunca se viu
goleada como aquela numa final, tampouco invasão de campo tão devotada,
motivada tão somente pelo entendimento comum de que ali se realizara algo
grandioso. Nunca se viu e jamais se verá novamente algo igual ou remotamente
semelhante, pois o tempo daquele futebol já não existe. Já não permite.
Fica, portanto, a marca de um tempo em
que malícia e picardia eram palavras inocentes, de quando se esperava que o
adversário, de fato, respeitasse as regras propostas. De um tempo em que o juiz
sequer interferia nos protocolos da cobrança de uma falta, dado que os
interessados soubessem exatamente o que fazer, sem necessidade de sprays ou de
coações constantes por parte do homem de preto. De um tempo em que não se
utilizava a simulação como estratagema de jogo; quando condutas anti-desportivas
eram a exceção. De um tempo em que se jogava e se deixava jogar. De um tempo,
enfim, em que, menos que jogadores ou homens, eram crianças confraternizando a arte do encontro, entre gols, saltinhos, beijinhos e abraços de carinho. Assim era o futebol de antigamente.
foto: ricardo azoury