terça-feira, 29 de maio de 2012

Pela Honra do Legado de Neném Prancha




Mestre Neném bem que avisou: "Lugar da bola é no chão..."

Se me perguntassem o que primeiro me ligou ao futebol, diferentemente da maioria que sempre responsabiliza a bola ou o time de infância, eu diria que a culpa é da grama. 

É ali que todo brasileiro sonha brilhar; num palco lúdico, esverdeado e bem cortadinho, como um tapete macio e gostoso no qual se possa pisar descalço e até mergulhar de peixinho.

Tanto se fala na bola - que a bola isso, que a bola aquilo; que uns dormiam abraçados a ela (caso do Heleno de Freitas), que outros preferiam colocá-la no chão (como era o meu caso), mas de todo modo -, sempre a evocá-la como ponto de partida e ente fundante do nosso apego ao futebol.

Há muitas décadas, disse Neném Prancha, técnico e filósofo em Ludopedhya: “A bola é de couro, e couro vem da vaca, que come capim, que todos sabem, nasce no chão, que é onde a bola deve estar”.

Concordo com a filosofia de Neném e presto reverência ao solo em que pisamos.

Lembro-me, por exemplo, da primeira vez em que vi o campo do Maracanã. Eu tinha oito anos e viajava com minha família rumo à Floresta da Tijuca. Lá de cima, a muitos quilômetros de distância, quando a vegetação que ladeava o asfalto se fez rarefeita, pude enfim, vislumbrá-lo; foi o primeiro contato visual de minha vida com o gramado sagrado do Maraca. Eu parecia o filho do inesquecível Costinha diante do Zico: “Pai, olha o Maracanã... É o Maracanã, pai... Pai...”. A simples visão daquele campo mítico virou meu único assunto no Verão de 83.

Era praticamente inconcebível a qualquer garoto que um dia sonhou em ser jogador profissional, não imaginar-se batendo bola num campo de grama perfeita. Todos passam pelo terrão, e fazem muita casca no joelho até (quiçá) conquistarem o “direito” de pisar num campo de gramado. Todo aquele que, literalmente, (se) ralou a vida toda num campo irregular de terra batida, jura por Deus que se jogasse na grama seria o melhor do mundo, tal é o grau de encantamento que a superfície natural desperta nos peladeiros.

Conforme consta nos anais deste blog, este escritor preza muito por uma pelada entre amigos em dia de chuva forte, num gramado ora escorregadio, ora encharcado. De preferência com bola de capotão e camisa de algodão para dar peso e emoção; sem camisa, então.... O Drama é inescapável. É de rir e chorar.

Correr num campo de grama alagado, com a chuva e o vento batendo contra o rosto, é algo exaustivo, mas extremamente libertário. É sublime. Talvez porque seja especial sentir-se parte da dinâmica da vida, servindo como testemunha e entreposto à água que cai das nuvens e desce pelo nosso corpo, indo de encontro às raízes que alimentarão a seiva vegetal; é como se permeássemos a conexão real entre o céu e a terra.

Mas.... Oh, céus! Por Deus, o que é isso!?!? Parem as máquinas! Iceberg logo à frente!!!

Após testemunhar “o fim do futebol romântico”, do tempo em que, tal qual o Carnaval, ele era um fenômeno de cunho predominantemente social, vi o futebol se transformar em mega-business. E com todas as elitizações e desrespeito às tradições que lhe foram impingidas pelos atuais tempos neoliberais – tempos bicudos, meu caro! – li, duas semanas atrás, uma notícia que me estarreceu ainda mais. Algo que parece ter saído das entranhas de um homem muito frustrado ou simplesmente desnaturado: a substituição do piso natural pelo de grama sintética em um dos principais palcos futebolísticos do mundo, o San Ciro/Giuseppe Meazza, cogeridos por Inter e Milan.

Que um magnata mexicano adote esse expediente - como fez Jorge Vergara, há dois anos, no estádio do Chivas Guadalajara, já é suficientemente bizarro, a ponto de obrigar o Internacional de Porto Alegre a ter de passar pelo ridículo de disputar uma final de Libertadores num campo de plástico e borracha (!); tudo com o aval da FIFA -, mas pensar que duas esquadras das mais clássicas do calcio farão o mesmo é de constranger o mais incauto dos torcedores. O que será que esses tomadores de decisão comem no café-da-manhã?

Fico tentando calcular o incalculável: quantos dos lances mais espetaculares de todos os tempos não teriam acontecido, caso seus protagonistas estivessem pisando num palco dessa estirpe? Quantas quicadas de bola patéticas e quantas raladas de boca teríamos de suportar?

Já nos tomaram a liberdade das arquibancadas, as gerais, a festa, a farra, as bandeiras, os tambores e tudo mais; já expulsaram o povo e encheram o estádio de boçais; e agora querem transformar a essência do jogo em borracha moída?! Qual o próximo passo para a desnaturalização e completa artificialização da nossa maior paixão? Bolas turbinadas que enganam goleiros, como a Jabulani? E o que mais?

O jogo de bola é um esporte que tem sido tranformado, a cada dia, em negócio de gente grande, com muito dinheiro envolvido e muita concentração de poder nas mãos de pouca gente; uma gente irresponsável e insensível a ponto de esquecer que a origem da nossa paixão vem lááá da infância: coisa de criança.

O futebol, tido como o mais clássico, tradicional e democrático dos esportes, parece estar passando por uma espécie de cirurgia estética para receber essa classe nouveau riche de torcedor – aquela que, segundo o$ dono$ da bola, “está muito exigente”. Um belo sofisma que, levado às últimas consequências, terminará por arruinar com a expectativa e a motivação de milhões de fãs que já se imaginam futuros craques.

São crianças que sonham em alcançar o Paraíso, correndo com uma bola nos pés, consagrando-se em campos de futebol, mundo afora. Campos de grama, naturalmente.


Ps: Johann Cruiff, maestro da Laranja Mecânica e atual consultor do Chivas, orientou o clube mexicano a recolocar o gramado natural em seu estádio, o que já está sendo feito. Ainda há esperança!!!

foto de João Sassi
Campo sintético do Varjão-DF

5 comentários:

  1. Meu pai, ao contrátrio do seu, não curte/curtia futebol a ponto de ir a estádios e saber do dia a dia dos times, inclusive do dele, o "mais querido" (Esporte Clube Ypiranga). Em compensação, sempre apreciou as nunances folcóricas do esporte. Durante algum tempo circulou lá em casa um exemplar de "Assim Falou Neném Prancha", que não sei que fim levou. Vendo o título do post, pensei até em te ofertar uma cópia, mas breve pesquisa na internet comprovou que o livro agora é item de colecionador, com preço compatível com a raridade. É, você vai ter de passar sem a compilação dos ensinamentos e entrevistas do mestre Neném, por enquanto ...

    Mas não se amofine! Nem mesmo em relação aos gramados. Veja que, usando um contra-exemplo radical, 15 dos 31 estádios usados regularmente na NFL usam grama natural, inclusive os de Pittsburgh e o de Chicago, onde o inverno é pra valer. Grama natural é mais style, com certeza!

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    1. Caro Márcio, se meu pai curtia ir ao estádio, esse afã terminou ao fim dos anos oitenta. Nunca tive o prazer de ir ao Maracanã com o velho... E nunca terei, ao menos ao velho Maracanã.

      Quanto ao seu pai, que descarado(!); parecia ter no futebol um ancoradouro seguro, ainda que não revelasse seus sentimentos. Mas o vivenciou, a seu modo.

      Por fim, 15 em 31, é?... É como eu disse: Ainda há esperança!!! Até os americanos enxergam beleza na Natureza!

      Abraço forte,

      El D.T.

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  2. Assunto não ligado ao tópico, mas pertinente de qualquer modo:

    http://negociosdoesporte.blogosfera.uol.com.br/2012/06/01/o-esporte-pode-peitar-a-tv/

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    1. Pois eu lhe digo, Márcio, que, enquanto assistia à partida, senti uma sensação agradável que, instintivamente, associei ao horário do jogo.

      Será que os canais concorrentes não poderiam fazer frente á Globo se se aliassem? Já imaginou que interessante termos jogos às 8 da noite? Faria toda a diferença para o torcedor que trabalha e sua para ir ao estádio.

      El D.T.

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  3. Acabo de assistir à reportagem de Tino Marcos, no Esporte Espetacular, falando sobre o "suntuoso" Cawboys Stadium - colosso que custou 2.2 bilhões e que comporta 110 mil pessoas. Só o telão central que fica suspendo no meio do estádio - e que é do tamanho de uma quadra de basquete - saiu por 77 milhões.

    E sabe para que? Para botar a grande seleção brasileira para jogar num gramado colocado às pressas, pois o original é de borracha moída e plástico. Segundo a maior promotora do jogo e principal interessada no espetáculo - a D. Rede Globo - o gramado recém posto "não ficou lé essas coisas", conforme expressou o Tino em sua matéria.

    De fato, qual a importância disso não é mesmo? Uma simples graminha, afinal...

    Como diria o Milton Leite: que beleeeeeza!...

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