sexta-feira, 24 de julho de 2020

Deus no Céu e Jesus na Terra




Quando se anunciou que Jorge Jesus seria o técnico do Mengão, foi o mesmo que nada; jamais ouvira falar. Porém, mesmo desconhecido, nada parecia pior que o time do Abelão, o que levou descrentes e ateus como eu a aceitar Jesus no coração.

O gajo, com ares soturnos de verdugo pinçado das masmorras de um conto medieval, chegou contestando a docilidade com que o adepto rubro-negro se deixava entorpecer pelos ‘deuses de 81’, entregando-se passivamente aos júbilos da Era Zico, ao passo que os caminhos rumo ao Olimpo se esfacelavam no esquecimento. Com um agravante: o Flamengo se contentava com uma única Liberta e um único Mundial, com a magnética passando pano e cantando que há quarenta anos botara o Liverpool na roda! Quarenta anos, galera!

Se estacionados em andaimes rebaixados desde o baile no time dos Beatles, subestimávamos clubes tal qual o paraguaio Olímpia (campeão mundial e tri da Liberta), é forçoso admitir que os tubarões do pedaço esfregassem as mãos nos confrontos de mata-mata; “Uêba! El Mengón és papa-frita!”, deleitavam-se, bem como as piabas continentais como o América (MEX) ou o Defensor (URU). Éramos do nível de um Argentino Jrs., de uma LDU, um Colo-colo, um Vasco da Gama(!!!) em termos de conquistas extraterritoriais, ó, pá.

Isso até a chegada do portuga, com sua cara de manga chupada e olhar de conquistador ultramarino. “Tá mal, Arão!”, já no primeiro treino. “Esse é dos nossos”, pensou geral. Não era. Os “nossos” ficaram todos pelo caminho, à exceção de um ou dois. Muito pouco. “Lutem para que nestas paredes estejam estampados vossos rostos na próxima época”, bradou o Odair José lusitano, chocando o Ninho do Urubu e questionando a devoção improdutiva ao passado, quebrando o encantamento letárgico que se abatera sobre nós desde os 3x0 no Santos, em 83, e, principalmente, extraindo o jogador do flamengo de sua eterna zona de conforto ao defenestrar o raciocínio terceiro-mundista de que “aqui é Mengão, o time do Zico” resolveria alguma coisa – quando, em verdade, o manto sagrado há muito deixara de se impor aos adversários como uma bastilha inexpugnável, senão o contrário; a mítica 10 do Galinho, símbolo máximo do apogeu rubro-negro, agonizava, vilipendiada por Mugnis, Minhocas, Carlos Eduardos e que tais.

E vieram os empolgantes 6x1 sobre o Goiás: meu irmãããããããão, há quanto tempo que tu não via o Flamengo fazer tanto gol, sem tirar o pé, e com tanta qualidade (alguém falou em 81?)? Quem viu, sabe; foi como nascer de novo! Era aquele o ‘time de índios’ que o Abelão rechaçava? Então me dá meu apito que já tô dando entrada na minha cidadania pindoramense! Após a peleja, os mais atentos haveriam de ter notado que nosso Roberto Carlos ibérico era o melhor cacique que a tribo da Gávea poderia ter. Um sonho inesperado, como um beijo do nada surgido de um fado sofrido, para em seguida nos apaixonarmos por aquele fiapo de homem algo bronco, mas terno, que até I LOVE YOU em libras sabia dizer! Olêêêêê-olê-olê-olêêê, mister, mister!!!

E vieram batalhas épicas, sendo desta feita o conquistador português um aliado, e subitamente não éramos mais nós a temer as invasões bárbaras vexatoriamente freqüentes no solo sagrado do Maracanã, mas muitas das outrora temidas etnias é que agora batiam em retirada, atordoadas, engolindo cuspes e palavras, no desespero de salvarem escalpos, filhos e vergonhas, à medida que um sentimento de confiança extrema ganhava materialidade dentro de cada indivíduo de vermelho e preto - e já não era mais o caso de ‘se’ venceríamos, mas de ‘por quanto’ venceríamos.

Nós, com menos de 60 anos, muito ouvíramos sobre um tal futebol total – será que era disso que falavam? Porque eu nunca tinha visto coisa igual. Nem tamanha simbiose entre jogadores, comissão técnica e torcida – a diretoria, embora eficiente, deixo de fora desse caldo saboroso porque é escrota (Garotos do Ninho?) e neofascista (Bozo?). E assim, taças, troféus, títulos e recordes se amontoaram durante o tempo exato em que nossa fatigada Mãe-Terra deu uma volta completa em torno ao Astro-Rei; mais canecos que derrotas. Assombroso.

Torcer pelo Flamengo, como disse o Juca Kfouri, passou a ser sinônimo de torcer pelo bom futebol. Línguas deletérias, críticas e detratoras silenciaram, sobrando uns poucos recalcados a não reconhecerem que o futebol brasileiro havia mudado, ou, como brilhantemente definiu o renomado e célebre pensador afro-americano contemporâneo Bruno Henrique, havia atingido “ôto patamá”. Rivais passaram a celebrar como um título empates arrancados ao esquadrão flamenguista. Técnicos adversários caíam como uva (essa é uma homenagem ao Queiroz) e cânones eram reduzidos a pó enquanto vacas sagradas se viam condenadas a pastar em público. A cidade, o país e o continente foram conquistados, mas o comandante ambicionava o mundo. Falhou na primeira tentativa, mas o roteiro já estava pronto para 2020: campeão da Copa do Brasil, barreira dos 100 pontos quebrada no Brasileirão, tri da Liberta no Maraca e vitória sobre os Reds no Mundial, again, com novo baile. Aí o Jesus seria contratado pelo, vá lá, Barcelona, o Gallardo o substituiria e todo mundo viveria feliz para sempre.

De repente, como no sonho pornográfico que sempre acaba quando a bola está quicando na frente do gol, o torcedor acordou. E também ele, que nunca havia sido tão feliz na vida; “estava no Paraíso e tive de decidir”. Covid, solidão, família, saudades da terrinha seriam suas justas razões, e quaisquer que tenham sido, haveriam de ser sumariamente aceitas e respeitadas. Seu choro nos braços de Rafinha e Éverton Ribeiro, na despedida, é revelador; ele sabe que jamais encontrará torcida como a do Flamengo, ou atmosfera como a do Maracanã. Aliás, ele logo descobrirá que, por lá, “mister” é protocolo, enquanto no Brasil se tornara marca registrada. Obrigado, Mister.

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